domingo, 27 de março de 2011

Ninguém morre duas vezes!

Ninguém morre duas vezes, disse-me a felicidade ontem ao jantar. “Quem é poeta não merece”. E eu, que nunca encontro as palavras para rimar os poemas que não escrevi, qual será o meu destino? De madrugada não há nada com que conversar, só um alento me alarma e me empurra, encolhe, rebaixa para debaixo do chão, para a sepultura, e é preciso ser morto-vivo para rastejar de lá para fora. Ninguém morre duas vezes. Mas mesmo assim, notei que as lápides tinham sido roubadas, e as deixadas para trás, tombadas, não tinham nome. Fechei os lábios pelos anónimos esquecidos, e até este dia não encontrei palavras que pudesse rezar. Ninguém olha de frente para o espelho. Ninguém sabe que nome tem. Nunca ninguém ouviu os gritos sentidos, que não me deixam dormir. Ninguém morre duas vezes. Arranquei um pedaço de história, quando ouvi o carro chegar quarta-feira à tarde. A última pétala já caiu, o relógio já tocou, a música já acabou.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Ela, com os olhos de vidro!

Aconteceu uma vez conhecer uma mulher, uma senhora. Uma mulher como tudo como as outras. Era morena, bonita, tinha uma boa voz. Fazia o trabalho para o qual não era paga, não recebia ordenado, e vivia numa casa, debaixo duma ponte. Só não dizia o que não queria. Desleixava-se como quem esquece o dia de ontem. Tinha os olhos verdes como a inveja que dela fazia porção! Mas os olhos que eram verdes como o musgo que lhe esbarra no coração… ela não os tinha. Ela tinha os olhos de vidro, como as garrafas das águas com gás. Sofria tanto desgosto por ela… tal destoava-a do sortido. Regelou-me assim que me fitou, senhora dos olhos de vidro. Meigo, foi o toque que ela me deu, só a mim, quando a conheci. Disse-me que não queria, que não precisa, de cera derretida nas campas de anteontem. O enredo mais doce que existiu já ela o conhece e não precisa de duplicação. Não para ver, mas para ouvir, cheirar e tocar. Ela disse-me que me conhecia, que me amansava, que eu me acomodava nela, fria enquanto adormecia. Mas não, não, ela não conseguia chorar. Apenas largava uns murmúrios incompreensíveis, que se estilhaçavam no chão. Só que eu nunca encontrei a chave para os desemaranhar. Oh, mulher dos olhos de vidro, quando eu te conheci. Um dia… um dia… olhos verdes como os teus olhos de vidro.

sábado, 12 de março de 2011

Ontem não adormeci...

Ontem não adormeci, como quem fica acordado à noite. Ontem não adormeci, e como que por pena do vulgar estive mesmo para te chamar, mas por ser alvorada e por saber que estavas deitado, também a dormir, pousei o telefone e desisti. Dei por mim a passear pela casa. Primeiro o quarto, depois o corredor, sala de estar, de jantar, cozinha e acabei debruçado na varanda. Passei pela garrafa de Martini e pela garrafa de Bacardi, derrubada, derramada pelo chão, passei pelo tapete com as manchas de café, pelas chaves do carro em cima da mesa, e pelos quadros pendurados nas paredes que ninguém liga.
Só que enquanto olhava para a rua, lembrei-me e lá decidi descer.
Na estrada estava frio, como em casa. Frio como quem gela. Frio como a arca frigorifica, como quem ama e desdenha. “Inspiração”… de quem “inspira” (para dentro, para fora, para dentro, para fora), a geada da noite gélida, da madrugada febril. Quando dei por mim, estava já a andar outra vez.
Não havia ninguém, por ali àquela hora, era só eu. Quando passava um carro, não dizia nada e seguia em frente.
Pareceu-me que estava a andar às voltas, como quem anda em círculos, sem chegar a lado nenhum. Sem chegar a minha casa. Sem chegar às janelas com as luzes ainda acesas, para encontrar o meu caminho. Sem chegar a um lugar onde pudesse caminhar com alguém, e não sozinho.   
Chegava a casa e tinha a porta da rua aberta, do prédio no meu andar! Ficaram esquecidas, como as chaves para as abrir. Esquecidas como os deveres e as tarefas de anteontem. Entrei e estava tudo escuro. Deu-me vontade de dormir. Fui para o quarto, deitei-me na cama e fechei os olhos. Não adormeci.